domingo, 29 de agosto de 2010

O inverso de Penélope

"Um dos mais importantes princípios das artes plásticas é o da linha. Basta ligar dois pontos para que ela surja, oferecendo as mais inesperadas combinações, num jogo musical e plástico entre aquilo que se imagina e aquilo que se conquista no momento da construção de um desenho, de uma escultura ou de uma instalação.
O termo “linha” indica ainda um modo de conceber o trabalho, como um caminho de pesquisa, de indagações, tanto visuais como existenciais, pois gerar uma linha significa seguir um percurso, nem sempre, porém, linear, mas, quando bem-sucedido, com unidade em seus objetivos e questionamentos.
O trabalho de Regina de Barros surge exatamente numa linha de pensamento que desfaz a linha. Ela toma pedaços de tecido e os vai desmanchando, desfazendo, desconstruindo, num processo em que as linhas permanecem soltas, esvoaçantes, indagadoras.
Elas, às vezes preenchidas por linhas de texto, escritas com caneta esferográfica sobre o tecido, vão conquistando seu espaço enquanto objeto artístico em si mesmas. O tecido e o texto, quando presente, podem ser desmontados, mas a linha, enquanto resposta à vida, emerge com força como uma resposta estrutural à falta de referência que caracteriza a arte contemporânea.
A linguagem da linha estabelece espaços e contornos, dando lugar ao tecido para que respire e, acima de tudo, ao observador para que veja como os espaços entre as linhas funcionam como os intervalos de uma vida. Nesse sentido, o trabalho vale por aquilo que é em si mesmo, mas, acima de tudo, pelo que evoca em termos de sutilezas.
O cheio e o vazio se integram num diálogo entre aquilo que o tecido voil era, aquilo que se tornou pelo processo de desestruturação feito pela artista e o que virá a ser, pois o tempo – sempre ele – também contribuirá decisivamente para desfiar o material, gerando novas linhas e, talvez, dar nova aparência aos suportes em que o resultado estético seja depositado.
O ato de fazer aponta para muito mais do que um trabalho com a matéria. Ele traz em si mesmo o poder de questionar o fluxo de tempo e da pequenez humana. Não se trata de uma questão abstrata, mas sim de uma realidade concreta. O passar do tempo desmancha as pessoas, assim como o ato de Regina de Barros transforma cada tecido que passa pelas suas mãos.
Se a mítica Penélope, referência obrigatória quando se pensa em fazer e desfazer, protagonizava duas ações, destruindo o que ela mesma construía, Raquel estrela o processo inverso. Ela desfaz para oferecer a quem vê uma ruína, um resto, mas com sabor de novo, com frescor.
Destruir, como a artista plástica prova em seu trabalho, pode ser extremamente sedutor. Se Penélope, com seu ato de desfiar a colcha diariamente fiada, adiava a cobiça e o desejo dos seus pretendentes, aguardando a chegada do marido Ulisses; Regina, com seu desfiar do tecido, atinge outro resultado, pois desperta, em vez da ira dos adversários do rei de Ítaca, um sentimento de admiração e cumplicidade.
Resta aos observadores de seu trabalho perguntar aonde ela pode chegar em sua pesquisa de linhas e volumes. Desmantelar, desse modo, é a melhor maneira de nos obrigar a reconstruir o que existe, sejam cacos, restos ou simplesmente linhas a nos orientar no mundo, tal qual múltiplos fios de Ariadne.
Os fios da artista paulista, porém, em vez de nos retirar do labirinto ameaçador do minotauro, nos fazem mergulhar nos meandros, nem sempre lineares, da nossa mente, onde neurônios se embatem de maneira incessante, em conexões das mais diversas, marcadas, porém, pelo funcionamento ininterrupto do tempo, companhia permanente dos míticos personagens gregos e de nós, cotidianos seres humanos a conviver com numerosas linhas: as do tempo, as do trabalho e as desafiadoras de Regina de Barros."

Oscar D’Ambrosio, jornalista, mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes Visuais da UNESP, integra a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA-Seção Brasil)